PALESTRA DA DRª MARISA ALMEIDA DEL’ISOLA E DINIZ
DIRETORA-GERAL DA ABIN
PROFISSIONALIZAÇÃO DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Para falar da profissionalização da Inteligência, é imperativo considerar, inicialmente, o papel dessa atividade e o contexto em que ela é exercitada.
Sem a intenção de aprofundar ou de esgotar qualquer análise de conjuntura, apresentaremos algumas das variáveis que conformam o mundo em que o Brasil se insere e no qual necessita maximizar oportunidades e minimizar obstáculos à consecução dos interesses nacionais.
Na atualidade, é inegável o peso dos fatores econômicos no poder dos Estados e a sua capacidade de prover o bem-estar a seus cidadãos. É também incontestável a importância da capacitação das sociedades para gerar conhecimento e para transformá-lo em valor econômico e social. Projetos nacionais podem ser afetados pela instabilidade dos fluxos financeiros, pela desvalorização das moedas, pelo empobrecimento das populações e conseqüente agravamento dos problemas sociais, pelo aprofundamento do hiato tecnológico entre as nações, pelo surgimento de novas prioridades na agenda internacional, pela insegurança transnacional.
No que se refere ao compartilhamento dos problemas globais, porém, a instantaneidade e a intensidade da conexão entre vários atores, estatais e não estatais, em questões singulares dificulta a antecipação e o manejo das crises, cada vez mais freqüentes, e maximizam seus efeitos.
A interdependência entre atores evidencia-se nos novos desafios no campo da segurança, os quais conduziram a um certo esgotamento das estratégias tradicionais de defesa. O crime organizado, a "lavagem" de dinheiro, o tráfico de drogas e o terrorismo internacional são exemplos de ameaças cujo espectro não se restringe a territórios específicos. Apesar dos benefícios à sociedade, a tecnologia da informação apresenta vulnerabilidades que são exploradas pelos Estados e, até mesmo, por organizações criminosas, narcotraficantes e terroristas, em prol de seus interesses. As redes criminosas também tornam factíveis ataques com agentes químicos e biológicos, com poucas chances de detecção e neutralização antecipadas. Para combater esses fenômenos, os países estão cientes de que são imprescindíveis a cooperação e a ação coordenada entre eles, o aperfeiçoamento dos aparatos de Inteligência e o envolvimento dos variados setores governamentais e privados e da sociedade civil organizada.
Em suma, por mais que se reconheça a proliferação de atores organizados em prol de objetivos idealistas, o conflito, a competição e a insegurança, agravados pela interdependência e pelas assimetrias, são as marcas mais fortes do atual sistema mundial.
Ser um ator ativo nesse cenário, assegurar alguma vantagem ou, ao menos, reduzir os possíveis prejuízos são desafios que essa realidade impõe aos Estados. Um dos diferenciais com que os governantes podem contar, nesse contexto, é sua condição de dispor de eficiente sistema de Inteligência, que lhes permita não só conhecer antecipadamente fatos e situações relevantes para a ação governamental, mas também proteger tudo aquilo que seja de interesse da coletividade nacional.
Os serviços de Inteligência dedicam-se à obtenção de informações acuradas que permitam o acompanhamento da dinâmica dos fatores de influência nas questões de interesse nacional e das tendências de ação de atores estatais e não estatais, visando à antecipação de situações potencialmente danosas ao país a que servem, à elaboração de conhecimentos destinados a garantir a segurança econômica e institucional do Estado a que pertencem e à sinalização de oportunidades que possam ser aproveitadas em benefício deste.
Tradicionalmente, a marca por excelência da atividade de Inteligência é sua possibilidade de valer-se de recursos especializados, tanto para buscar dados protegidos pelo oponente e processá-los, quanto para salvaguardar os segredos de interesse da sociedade nacional. O nível de vantagens competitivas que cada país detém na arena internacional é um dos indicadores de seu avanço em matéria de construção e de utilização adequadas da estrutura de Inteligência.
Entretanto, não basta instituir burocraticamente essa estrutura. É necessário profissionalizá-la como instrumento permanente do Estado, à disposição dos sucessivos governantes. Esse preparo envolve, entre outros, aspectos conceituais, legais, tecnológicos e humanos.
No nível conceitual, no que se refere ao amadurecimento da atividade no Brasil, gostaríamos de destacar quatro pontos marcantes. O primeiro, o processo de instituição do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e de criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o qual foi marcado por debates bastante importantes do ponto de vista do aperfeiçoamento das instituições brasileiras. O segundo, a inclusão no texto da Lei de mecanismos de supervisão e controle das atividades de Inteligência, reconhecidamente instrumentos de legitimação democrática dos atos públicos. O terceiro destaque é a própria realização deste seminário, aqui, no Congresso Nacional, aberto a toda a sociedade. Por fim, mas de semelhante importância, citamos a disposição de acadêmicos brasileiros de se debruçarem no estudo desse tema, de fundamental importância para os países e de, como formadores de opinião, ofertarem contribuições valiosas para o debate circunstanciado das questões que envolvem a Inteligência de Estado no Brasil.
O momento que caracterizamos como "conceitual", marcado por discussões, esclarecimentos e definições objetivas, é básico para que se determinem as necessidades acerca de um outro requisito para a profissionalização das ações de Inteligência do País: o aparato legal.
A moldura principal nesse sentido já está estabelecida - a Lei 9.883, de 7 de dezembro de 1999, que instituiu o Sisbin e criou a Abin. Caso, porém, como decorrência dos debates sobre a atividade — realizados conceitualmente, mas tendo como pano de fundo o mundo real —, representantes do Estado e da sociedade brasileira julguem que querem para o País uma estrutura mais competitiva, será necessário rever instrumentos legais existentes ou instituir novos.
Considerando que a referida lei estabelece no inciso I, do seu Art. 4º que, à Abin cabe planejar e executar ações, inclusive sigilosas, caberia uma discussão a respeito dos limites dessas ações. O estabelecimento inequívoco de prescrições relacionadas a esse ponto não só propiciaria um referencial objetivo para o controle e a supervisão das atividades, como contribuiria para o natural aperfeiçoamento desse processo e daria à Agência melhores condições de efetivamente contrapor-se a ações adversas.
Outro aspecto que interfere na profissionalização da atividade de Inteligência e que gostaríamos de comentar é o referente aos recursos tecnológicos.
A rápida evolução mundial nessa área oferece oportunidades e desafios para as organizações em geral e para as de Inteligência em particular. Por tradição, esta se vale de equipamentos e sistemas úteis ao desenvolvimento de operações técnicas e aos sistemas técnicos de coleta, processamento e análise da informação. As mais recentes tendências, entretanto, transparecem a ampliação dessas necessidades.
Os interesses da atividade de Inteligência expandem-se para os segmentos de microeletrônica, inteligência de sinais, fontes abertas, informações geoespaciais, criptologia, supercomputação, óptica e matemática, com flagrante evidência para a tecnologia da informação. A concreta associação entre as novas áreas do conhecimento humano e o universo de possibilidades proporcionados pela tecnologia da informação vem provocando consideráveis investimentos mundiais de ordem financeira e intelectual, seja em proveito da exploração e da análise de dados, seja na reengenharia de processos de trabalho em Inteligência com suporte em computação avançada.
Do ponto de vista das salvaguardas atinentes à proteção das informações de interesse do Estado e à defesa do patrimônio de conhecimentos domésticos de natureza científica e tecnológica, a atividade de Inteligência nacional busca a constante incorporação e atualização de sua capacidade doméstica de provimento de soluções. Tal objetivo permanente decorre da característica especialmente agressiva das ferramentas externas de ataque ao sigilo das informações, baseadas nas técnicas e ciências antes mencionadas, e que se tornam diariamente mais velozes, discretas, invasivas e eficazes.
Os esforços da contra-inteligência exigem o apoio das tecnologias de segurança da informação. Equipamentos especiais para comunicação precisam ser desenvolvidos internamente, e o são, por comprovadas razões de segurança. A tarefa exige conhecimentos tecnológicos e capacidade de concepção e execução tão ou mais especializados que aqueles aplicados na busca e coleta de dados, pois o êxito da atividade de proteção pressupõe o integral conhecimento dos recursos e métodos empregados pelo adversário.
Os desafios de desenvolvimento tecnológico enfrentados pelos profissionais de Inteligência têm sido dinâmicos e de complexidade crescentes. Além de recursos materiais e financeiros, é necessária a disponibilidade, em número e qualidade, de profissionais dispostos e capacitados a atuar em benefício de projetos de interesse da Inteligência de Estado. Nesse aspecto, uma visita aos sítios de Internet dos principais serviços de Inteligência do mundo surpreende pela constatação de uma unanimidade: o oferecimento de vagas para especialistas em ciências e tecnologias específicas, com aplicação direta ou indireta na atividade de Inteligência.
Deve ficar claro, portanto, que não é suficiente investir em tecnologia. Paralelamente devem-se adotar estratégias de desenvolvimento do capital humano disponível. O domínio de novas tecnologias exige pessoas devidamente capacitadas, o que inclui não só a aquisição de novos conhecimentos, mas também a ampliação do leque de habilidades.
A respeito da importância do elemento humano na profissionalização da atividade de Inteligência falaremos um pouco mais, não só por sua importância intrínseca, mas também em decorrência dos desafios que a Abin enfrenta, relacionados a seleção, formação e, em especial, retenção de talentos.
O provimento de cargos na Abin realiza-se, a exemplo das demais áreas do governo, por intermédio de concurso público.
Quando da definição do concurso para analista de Inteligência realizado em 1999 e do estabelecimento do curso de formação como uma das etapas do processo, surgiram vários questionamentos, entre os quais: que profissional necessitávamos atrair, formar e reter na Abin?
Percebia-se, pelo andamento do projeto de criação do novo órgão, a responsabilidade de provê-lo de pessoas que deveriam, em curto prazo, estar em condições de agregar valor à organização, numa fase de extrema importância.
Considerando o cenário e as exigências do mundo moderno, optou-se por não restringir a área de formação acadêmica e por exigir, além de conhecimentos gerais e específicos, o domínio de idioma estrangeiro. No concurso de 1999, atraímos 9.064 candidatos para 120 vagas; no ano de 2000, 10.546 candidatos para 61 vagas.
No planejamento da formação prevaleceu — e continua prevalecendo — uma visão de futuro, baseada no delineamento dos desafios a serem enfrentados pelos novos servidores, em um mundo crescentemente complexo, e das demandas a que estariam sujeitos. Consideraram-se ainda as características do órgão de Inteligência e o perfil profissional desejável.
A formação passou então a enfatizar o ensino de métodos e técnicas de trabalho e o desenvolvimento de habilidades, os quais, somados ao conhecimento acadêmico, pudessem garantir a plena capacidade de utilização daqueles instrumentos. Nesse contexto, valorizaram-se, entre outros, os seguintes atributos: capacidade de análise e síntese; raciocínio lógico; raciocínio prospectivo; flexibilidade de raciocínio; criatividade; capacidade de trabalhar sob pressão; idealismo; lealdade e responsabilidade.
A definição das estratégias de ensino-aprendizagem, à época dos concursos aqui referenciados, lançou as bases do novo processo de profissionalização dos que atuam na Agência. Esse deve, necessariamente, conduzir e garantir o conhecimento da organização, a assimilação de seus valores, a aquisição de competências e habilidades essenciais ao cumprimento de suas atribuições regimentais.
Os requisitos éticos e morais do profissional de Inteligência, pelo relevo que lhes é dado, constituem uma preocupação à parte. Além da observância dos deveres, atribuições e responsabilidades previstos no ordenamento legal geral e no que regula as atividades dos servidores públicos federais, cabe, especialmente: exercer a atividade de Inteligência com critério, segurança, e isenção; buscar a verdade, como elemento básico de suas ações; ser discreto no trato dos assuntos de serviço e não utilizar, para fins pessoais, informações a que tenha acesso na condição de agente público.
Isso tudo implica debater o conceito de Inteligência, alicerçado nos valores democráticos, ressaltar a importância da ética, da honestidade de propósitos, da disciplina consciente e da retidão de atitudes. Implica, enfim, conduzir os profissionais à adoção de um conjunto de crenças e de valores que orientem suas atitudes e condutas, contribuindo para a necessária confiabilidade de suas ações pessoais e profissionais, mesmo após a aposentadoria ou o desligamento do órgão.
O elemento humano é, portanto, peça chave para que as ações de Inteligência apresentem eficiência e eficácia. A seleção e a formação do profissional nessa área não se realizam adequadamente em bases simplistas. É impositivo que o órgão tenha condições e recursos para implementar uma política de pessoal diferenciada, estável, que garanta aos funcionários a possibilidade de vislumbrar, com segurança, seus horizontes.
É importante considerar que a profissionalização de que tratamos, com foco no ser humano, valoriza a educação continuada. A carreira do analista de Inteligência prevê um curso de formação, com o objetivo de capacitá-lo para o desempenho das atribuições inerentes ao cargo e para a assimilação dos valores éticos da atividade de Inteligência. Após 8 anos da conclusão desse, um curso de aperfeiçoamento irá propiciar o aprimoramento do desempenho de suas atribuições. Decorridos 7 anos, um curso avançado, introduzido com a recém-criada carreira, deverá capacitá-lo para a atuação estratégica, incluindo o gerenciamento da atividade de Inteligência no mais alto nível, em benefício da segurança do Estado e da sociedade.
Complementarmente a esses cursos, são desenvolvidos programas de capacitação específica, em áreas de interesse da atividade, realizados na Escola de Inteligência da Abin, em universidades ou outros locais, com ou sem subsídio institucional.
Se as exigências atuais impõem às organizações prontidão para formar e manter atualizado o seu capital intelectual, em nossa concepção, de uma forma ainda mais imperiosa, considerando os desafios e as ameaças abordados, a profissionalização implica a aquisição constante de novos conhecimentos, o esforço em acompanhar o avanço tecnológico e a busca de alternativas que possam transformar-se em ferramentas seguras e eficientes no desempenho das funções.
Por último, ao abordarmos a questão da profissionalização da atividade de inteligência com foco no ser humano, devemos considerar as variáveis reconhecimento e remuneração, por seu efeito motivacional no comportamento.
Não basta atrair e profissionalizar. É preciso reter os profissionais. Apesar do extenso rol de competências e habilidades requeridas; do rigor de conduta ética esperado; do anonimato, essencial ao cumprimento das tarefas, em detrimento de vaidades pessoais; da necessária resistência à frustração, em virtude das naturais dificuldades de se obter e informar acurada e oportunamente o que o oponente deliberadamente protege; da dedicação integral, que muitas vezes contribui para a renúncia a um convívio familiar e social rotineiro; do trato de assuntos sigilosos, que gera incompreensão e desconfiança, a remuneração e o reconhecimento desses profissionais ainda requerem atenção.
A remuneração oferecida aos servidores as Abin — cujo plano de carreira encontra-se expresso em uma medida provisória em fase de apreciação pelo Congresso Nacional — ainda é inferior à de várias outras categorias de funcionários do Estado. Isso tem levado à evasão de jovens concursados, com perda de investimento público específico, descontinuidade dos processos de formação de novos quadros e de renovação da organização e possível comprometimento de aspectos relacionados à segurança.
No plano do reconhecimento e com vistas no futuro da organização, entendemos que as dificuldades atuais advindas da reduzida compreensão quanto ao real papel da atividade de Inteligência, que ainda existe por parte de diferentes segmentos da sociedade, devem, idealmente, ser superadas, ou, numa visão mais realista, ao menos ser amenizadas.
Por um lado, a correta percepção da atividade de Inteligência por esses segmentos e o entendimento preciso de seu papel, por parte dos profissionais, são imprescindíveis, e implicam a necessidade de interdependência entre a organização — Abin — e o profissional de Inteligência, o que contribuirá para a profissionalização da atividade e garantirá o sucesso organizacional.
Por outro lado, havendo tal interdependência e prevalecendo a cultura do comprometimento do servidor com a organização estaremos garantindo a caminhada, já iniciada, da profissionalização. Restará, como conseqüência e parte intrínseca desse processo, obter o respeito e o reconhecimento do Estado e da sociedade, sem o que o êxito da profissionalização estará comprometido.
É necessário que a atividade de Inteligência seja mais conhecida pela sociedade brasileira, para que, dessa forma, compreenda a sua evolução no Brasil e possa influenciar o seu futuro.
Concluindo, o Brasil já deu passos decisivos no sentido de construir uma estrutura de Inteligência profissionalizada. É preciso que se avance na caminhada, de modo consciente, maduro, seguro, concertado e institucionalizado; que o processo seja baseado na confiança, mas lastreado em instrumentos modernos e eficazes de verificação; que se promovam as condições de especialização da estrutura humana e tecnológica da atividade de Inteligência de Estado brasileira; e que, em todos esses momentos, se considere não apenas a posição relativa do País no contexto internacional, mas também a presença que se deseja que ele venha a ter em futuro não muito distante.
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