Título: Tributação e corrupção
Autor: Ives Gandra Martins
Fonte: Jornal do Brasil, 28/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

Defendi, em 1982, tese de doutoramento na Universidade Mackenzie, posteriormente publicada em livro sob o título Teoria da imposição tributária, em que procurei conciliar as posturas sobre a natureza da norma jurídica de Carlos Cossio e Hans Kelsen.

Kelsen entendia ser a norma sancionatória primária, pois, sem ela, a norma de comportamento ou conduta não teria como ser cumprida. Esta seria, portanto, uma norma secundária. Por outro lado, Cóssio entendia ser primária a norma de conduta (endonorma) e secundária a sancionatória (perinorma), pois só seria aplicável para os casos patológicos de descumprimento da norma comportamental.

Formulei uma terceira equação, mostrando serem as duas teorias conciliáveis, a partir da introdução de um terceiro critério aferidor, ou seja, a qualidade axiológica ou valorativa da norma é que permitiria a aplicação de uma ou outra teoria.

Assim sendo, se a norma fosse de ''aceitação social'', como, por exemplo, a que protege o direito à vida, a norma sancionatória seria secundária, pois, mesmo sem cominação de penalidade, a grande maioria das pessoas não sairia assassinando seus semelhantes. Neste caso, Cóssio teria razão.

Em compensação, se a norma fosse de ''rejeição social'', prevaleceria a tese kelseniana, pois sem sanção ninguém a cumpriria. Entre estas normas, estariam as normas tributárias, pois, sem punição, o povo não pagaria tributos, por saber que parte considerável da imposição fiscal é destinada, exclusivamente, à manutenção dos governantes (políticos e burocratas) no poder e somente parcela - muitas vezes reduzida - retorna ao povo, em serviços públicos.

Mais do que isto, é o tributo o grande gerador de corrupção, pois os superfaturamentos, nas contratações públicas; a integração ao serviço público de pessoas não concursadas, ''amigas do rei''; a proliferação de ministérios e secretarias; as mordomias multiplicadas e a criação de serviços inúteis e desnecessários, com o objetivo de beneficiar aliados, são pagos com os recursos do erário, dentre os quais, os mais relevantes, obtidos da sociedade, são os tributos.

Na atual crise brasileira, começa a ficar evidente que parcela ponderável da confiscatória carga tributária arrecadada (38% do PIB) é dirigida a tais formas de sangria do Tesouro e não apenas para obtenção do superávit primário.

O aspecto, entretanto, que mais tem sido motivo de especulação, é o que diz respeito às verbas de publicidade, visto que são empresas desse setor que estão no centro da crise sem fronteiras por que passa a nação.

Ocorre que, pela Constituição, a publicidade governamental é proibida, exceção feita àquela de cunho educativo, informativo e a destinada a orientar socialmente o povo, como consta do artigo 37 § 1º da Lei Maior.

Como o referido artigo cuida da ''Administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios'', é de se entender que o parágrafo se refira tanto à administração direta, como a autarquias, fundações e empresas públicas, não se justificando, pois, que recursos tributários - de necessária aplicação em serviços para a sociedade - sejam utilizados na ''promoção'' dos governantes.

Ocorre que, ao contrário de uma obra pública, em que é fácil dimensionar o custo do serviço contratado, na publicidade, que se remunera ''engenho e a arte'', ou seja, a criatividade, não existem parâmetros confiáveis para avaliar, objetivamente, o valor do contrato.

Por esta razão, é que - e falo, apenas, em tese - as centenas de milhões de reais transitando, segundo as investigações, por contas de publicitários e sobre cujo destino divergem governantes, assessores, oposição etc., presumivelmente provêm de tributos pagos pelos contribuintes para engordar as burras do Estado, e, ao invés de serem utilizados em serviços públicos, tiveram uso inadequado, que pode ter resvalado para a corrupção, peculato e outros possíveis crimes paralelos.

Em outras palavras, a indecente carga tributária que o brasileiro paga é que, possivelmente, tenha alimentado o mar de lama que parece afogar o governo e que revolta a sociedade como um todo.

Quanto mais passa o tempo, tanto mais vejo confirmada a minha tese de que o tributo é uma norma de rejeição social e o principal instrumento de domínio dos governos sobre a sociedade. Infelizmente, o fenômeno não é apenas brasileiro, mas, como pretendo demonstrar em outro livro, que se encontra no prelo (Uma teoria do tributo), acompanha a humanidade em todos os períodos históricos e em todos os espaços geográficos.